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O Papel do Estado no Cooperativismo: Além da Submissão ao Capital



Por: Rosalvi Monteagudo


O cooperativismo, enquanto movimento social e econômico baseado na solidariedade, na ajuda mútua e na autogestão, surge como uma alternativa ao modelo capitalista tradicional. Contudo, a prática do cooperativismo no Brasil – e em muitas partes do mundo – tem sido moldada por duas forças externas que frequentemente limitam sua essência: a submissão ao capital e a influência contraditória do Estado.


Este artigo pretende analisar o papel do Estado no cooperativismo, para além da perspectiva de tutela e controle, e refletir sobre como a dependência ao capital distorce os princípios cooperativistas fundamentais.



1. O Estado: Entre a Fomento e a Contradição


Historicamente, o Estado brasileiro desempenhou um papel ambíguo no desenvolvimento do cooperativismo. Por um lado, criou leis, instituiu órgãos de apoio técnico e até reconheceu formalmente a importância das cooperativas na Constituição Federal de 1988. Por outro lado, muitas vezes atuou como instrumento de controle político e ideológico, subvertendo a autonomia dos cooperados.


A função do Estado, num modelo verdadeiramente democrático e cooperativo, não deveria ser a de tutela, mas de fomento estratégico, promovendo políticas públicas que fortaleçam a base associativa, respeitem a autogestão e incentivem a intercooperação. Infelizmente, muitas vezes o Estado atua como regulador e fiscalizador excessivo, submetendo as cooperativas às mesmas lógicas burocráticas e tributárias das empresas capitalistas tradicionais, sem reconhecer suas especificidades sociais.


Além disso, o Estado frequentemente terceiriza serviços públicos às cooperativas sem lhes dar estrutura adequada ou capacitação, transformando-as em instrumentos precários de políticas públicas de emergência – o que compromete a qualidade do serviço e descaracteriza a essência cooperativa.



2. A Submissão ao Capital e os Riscos da Cooperação de Fachada


O segundo grande entrave é a submissão ao capital. Muitas cooperativas, especialmente as de crédito e de produção, tornaram-se reféns das lógicas de mercado. Governadas por gestores formados na lógica empresarial, e financiadas por bancos que impõem metas e garantias próprias do setor financeiro tradicional, essas cooperativas atuam como empresas comuns, usando o nome "cooperativa" apenas como fachada jurídica.


Esse desvio leva a práticas como a distribuição desigual de resultados, a profissionalização da gestão sem participação efetiva dos cooperados e a perda da identidade social. A cooperativa se transforma, então, numa empresa com donos ocultos, onde o poder não está mais na base, mas concentrado nas mãos de poucos dirigentes e consultores externos.



3. O Estado como Articulador da Intercooperação


Diante desse cenário, é fundamental rediscutir o papel do Estado. Em vez de gestor ou controlador, ele deve ser articulador da intercooperação. Pode-se imaginar um novo modelo de atuação estatal: descentralizado, participativo e educativo.


Um Estado cooperativo é aquele que:


Cria espaços permanentes de diálogo entre cooperativas, movimentos sociais e gestores públicos;


Apoia financeiramente plataformas digitais de intercooperação que articulem demandas, saberes e soluções entre cooperativas;


Incentiva programas de educação cooperativista desde o ensino básico, promovendo uma cultura da cooperação;


Garante acesso a crédito específico para projetos inovadores, sustentáveis e colaborativos, sem impor a lógica bancária tradicional;


Protege juridicamente as cooperativas contra a captura por interesses privados.



4. Caminhos para a Emancipação Cooperativa


A verdadeira emancipação cooperativa exige uma mudança de paradigma. Não basta romper com a submissão ao capital; é preciso também reinventar o papel do Estado como parceiro, e não como tutor. O fortalecimento da base – o cooperado como sujeito político e econômico – deve estar no centro das políticas públicas cooperativistas.


Superar o modelo assistencialista e substituir a lógica da competitividade pela lógica da cooperação intercooperativa é o desafio de nosso tempo. E, para isso, o Estado tem um papel fundamental: ser o facilitador de processos autogestionários, o indutor da democracia econômica e o promotor da solidariedade institucional.



Conclusão


O cooperativismo não é apenas um modelo de negócio. É um projeto civilizatório. E esse projeto precisa de um Estado comprometido com a justiça social, a economia solidária e a cidadania ativa. O papel do Estado no cooperativismo deve ir além da normatização e do financiamento: deve ser o de semear condições para que as cooperativas floresçam com autonomia, equidade e compromisso com o bem comum.


Que se quebrem as correntes da submissão ao capital e se abram os caminhos da intercooperação emancipadora. O futuro do cooperativismo depende disso.



Rosalvi Monteagudo
Rosalvi Monteagudo

Rosalvi Monteagudo é mestre em cooperativismo, formada pelo CEDOPE/UNISINOS (RS), e atua como pesquisadora, professora e articulista. É membro da Aliança Cooperativa Internacional (ACI) e da Associação Brasileira dos Pesquisadores de Economia Solidária.

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